Enterrar vocês perdeu o clima. Não porque ficamos mais frios, não é isso. Nem porque nos habituamos. É vero que cada ano novo alguns dos velhos resolvem tirar o time. Este ano uns cinco deixaram o campo não tanto por contusão, mas por exaustão. Estive duas vezes nas despedidas e também fiquei exausto. Além do que estar no banco de reservas é tenso demais.
Há quatro anos, em 2020, foram muitos, inclusive desconhecidos. Tenho certeza, talvez a única certeza, de que foi ali na pandemia que começamos a perder o clima. Diante da demanda, os cemitérios viraram motéis de alta rotatividade. Melhor, puteiros. Não, butecos. A pessoa entra, nem senta e já acabou a cerveja. É um corre pra se livrar de vocês. É rapidinha demais. Como entrar no clima?
Tempo é dinheiro e nesses lugares a fila tá grande. Mas sabe da maior? Os caras estão sentados numa mina. Agora cobram por hora, uma grana, mais de mil conto por hora. Pra vocês não tem problema, já estão em outra, surfando no ar, dando piruetas, cavalos de pau no invisível. O problema é pra nós do banco de reservas. Duas horas deitados ali custam uns três paus no pix. Se botar no cartão tem juros de cartão. Juros vivos. Foda né?
Mas isso não é o pior, meus queridos passados. Proibiram flores nas despedidas. Vou repetir. Proibiram flores nas despedidas. Flores de verdade. Flores, flores. Só aceitam flores de plástico! Aquele hábito antigo de deixar um monte de flores dentro do caixão em cima da barriga, também proibiram. Elas devem poluir o ambiente, sei la. E se for pro fogo, vão precisar tirar, mais trabalho pra faxina.
E as velas? Assim como as flores, as velas acabaram. Agora só velas de mentira, lâmpadas de lead que imitam as de verdade. Isso já tem mais tempo, eu sei, mas é uma prova de que a ultima homenagem perdeu seu clima há alguns anos. Nem lembro a ultima vez que vi vela de verdade com fumaça preta e cheiro de cera no velório.
Velório? Nem tem mais velório, cara! Aquele negócio de passar a noite ao lado de vocês acabou, imagina, um luxo! Velório agora é pra rico, podre de rico. Lembro de minha mãe pobrinha passando a noite sentada ao lado da prima dela que eu chamava de tia. Achava aquilo triste demais, mas era a obrigação, o mínimo que se poderia fazer. Aquele tempo acabou, véi, quando as flores eram de verdade, as velas queimavam, não se cobrava por hora e os cemitérios nem deviam ter CNPJ. Hoje são grandes empresas.
Uma velha amiga, ainda viva graças a Jah, fez de tudo pra abrir uma cafeteria dentro de um cemitério. Final dos anos 90. Me chamou pra ser sócio. Ela tinha certeza que iriam virar, no futuro, centros de convivência, tipo clubes e a gente iria enricar. Foi à luta mas desistiu diante da máfia que já existia. Ela não foi a única a ter a idéia. Hoje só faltam ter lojas de artesanato baiano, mesas de sinuca e pizzarias.
A morte virou mais um evento de lacração, postagens de despedidas, busca de likes e engajamentos. Não contam só os amigos presenciais, mas os lamentos virtuais. Os presenciais tiram fotos para emocionar as redes. Se não postar, não morreu.
Quando for minha vez, quero estar no Insta, mais vistoso. No face não, muito careta. Quando for minha vez quero flores de verdade, velas e uma noitada de velorio, fodam-se as regras. Se virem nos cartões, dividam em 60 vezes, vendam o carro, transgridam. Vocês estão vivos pra isso. Se liguem, morrer não é apenas mais um evento, morrer é uma revolução.
Depois podem me esquecer.
Beijos quentes!
É bem isso mesmo. Morrer está pela hora da morte!