O rio é um sujeito tinhoso. É aquele cara de butuca na esquina, observando tudo, olhando os farsantes nas suas tramas destrutivas. De repente indignado dá o bote. Pisou no calo, não sobra nada. Pisar no calo é mexer com a mãe.
Nos treinos de artes marciais, o sensei orientava sobre as ruas. Quando tem uma briga, se liguem nos mais calmos, os que apenas observam. Os que gritam, ameaçam, são covardes. Os silenciosos, são os perigosos.
O rio é assim, quieto e calado até que alguém mexe com a mãe. O vento é parecido, moço discreto, silencioso e invisível, uma brisa de gente, até que alguém mexe com a mãe. E o mar, o gigante luminoso com suas ondas brincalhonas, é respeitoso e meditativo até que alguém mexe com a mãe. Quando se unem em defesa da mãe, não sobra nada. Nada, nada. E não adianta pedir perdão, chamar por deuses, jurar inocência.
Quando eu era garoto vivendo parte da vida nos becos do Santo Antonio, havia uma lei nas ruas nunca escrita mas respeitada por todos: em mãe não se mexe. Era sagrada, mãe era intocável. A gente era capaz de dar a vida por ela. Ai vira adulto, imagina que agora vai ponderar e não ligar tanto para as ofensas. Até que alguém mexe com a mãe. Mesmo que dessa vez não reaja de imediato, aquilo fica no modo “me aguarde”.
Um monte de gente malvada vem xingando, ofendendo, maltratando a mãe. Gente poderosa seduzindo e financiando gente ignorante para abusar da mãe. Com a paciência de quem sabe da própria força, a mãe acolhe as ofensas, mas os filhos não. Quando se unem, fazem o caos. Destroem em minutos o que os que ofendem constroem em anos, séculos.
A loja da Havan em Lageado, no RS, foi construida em área de proteção ambiental, ultimo resquício de Mata Atlântica na cidade gaúcha. Para burlar a legislação, Luciano Hang, o dono da empresa, teve apoio dos governos estadual e municipal. Com o amaldiçoado dinheiro na frente comprando e driblando tudo, inclusive as leis, determinou a derrubada de centenas de árvores. Assim, modificou o ecossistema local para instalar sua loja de bugigangas. Ai veio o rio em defesa da mãe, engoliu a loja.
Como a mãe não discrimina e os filhos também, a destruição é geral, todos pagam. Os mais fracos são os primeiros, os fortes na sequência e os muito fortes ficam no modo "me aguarde". Mais de 300 cidades do RS foram engolidas pelos rios. Os que menos tinham parcelas de culpa, os animais, foram arrastados aos milhares pelas correntezas. Crianças aos montes também acabaram tragadas pelas águas. Outras perdidas, outros abandonados, vários resgatados.
As águas são do mundo das emoções, suas inquietações mexem com todas as emoções em volta, acima e abaixo do equador. A tragédia no RS está revolvendo nossas águas, nos exaurindo. Para onde se olha, lá estão elas nas telas e nos pesadelos. Mesmo não diretamente atingido, estou exausto. Muitos estão.
Quando elas decidirem parar e a mãe conseguir acalmar seus fillhos, deixarão de legado os traumas, muitos traumas. São as formas utilizadas pela mãe para ensinar seus inquilinos rudes e ingratos a não mexerem com ela. Se não aprenderem, na próxima vai ser o fim. E é isso que será, o fim.
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