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Foto do escritorArthur Andrade Tree

BUMERANGUE

É de um simbolismo cruel o rapaz jogado do alto de um viaduto por policiais militares de São Paulo. Lançado assim como uma coisa, uma lata, um balde de lixo para sujar o asfalto. Ouvi muita gente tratar como desumano o gesto dos policiais. Como assim, desumano? Desde quando humanos produzem gestos não humanos?


Os policiais cruéis são terrivelmente humanos. Não há diferença essencial entre o humano jogado da ponte e os humanos que os jogaram. Humanos matam humanos.  Chamá-los de “desumanos” é considerar que humanos são sinônimo de boa coisa. Sinto muito, desumano é uma palavra inútil e irreal. Somos todos humanos.


A cena de SP lembra a ditadura, quando humanos eram lançados do alto de helicópteros no meio do mar por outros humanos, militares da repressão. Humanos bem remunerados pelo estado para matar.


Conheci um desses humanos, um cara nascido no interior de São Paulo convocado após o serviço militar para a Operação Bandeirantes, a monstruosa Oban. Seu trabalho era se infiltrar, entregar oponentes do regime e acompanhá-los às sessões de tortura. Quando o conheci em Salvador, uma década após deixar a Oban, estava alcoolizado. Vivia alcoolizado. Morreu pouco tempo depois de cirrose hepática.  Antes de morrer, me contou os horrores que causou. Ele desabafava, precisava. Entre um copo de outro, falava. Eu ouvia em silencio, pra mim aquilo não era real, era um filme.


Só fui processar tudo muito tempo depois de sua morte. Um humano que ajudou a matar outros humanos por um motivo que ele nem entendia direito. Pessoas da mesma idade, 20, 21 anos, cabeludos como ele, com ideias diferentes, mas que não pareciam perigosos. Viu muitos mortos. Passou a sonhar com gritos. Passou a andar com medo de sombras. Pediu pra sair, implorou pra sair. Correu pra Bahia, casou-se, teve filhos e os pesadelos continuavam. Passou a beber, beber muito. Matou-se com o álcool.


Décadas depois, um dos seus filhos, já adulto e pai de duas crianças, foi morto na porta de casa por dois traficantes. Antes dos tiros, ele pediu aos criminosos que esperassem um pouco até a mãe tirar as crianças da cena. Os caras esperaram. Tragédias perseguem tragédias. Ninguém escapa das suas e ainda corre o risco de passar adiante como uma frequência densa de energia. Chamam de carma, chamam de destino. O que sei é que ninguém escapa das suas crueldades. Esses policiais que jogaram o rapaz da ponte, um dia serão jogados também. Tudo é uma questão de tempo, da hora do bumerangue da vida voltar.

E volta, viu?

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