Acho que fui com muita expectativa assistir ao “Ainda estou aqui”. Esperava me indignar do começo ao fim. Estava preparado para a indignação. Devo estar frio, seco, lento, mas minha indignação durou uns 15 minutos em um filme de 126. Ah, mas o filme não era sobre a ditadura, era sobre a força de uma mulher cujo marido foi eliminado pela ditadura. Então véi, era sobre a ditadura.
“Não se fala sobre isso aqui em casa”, diz uma das filhas sobre o assunto “ditadura” respondendo às indagações de uma das irmãs. Isso resume o filme e a época. Não se fala sobre ditadura. Nem se mostra, salvo algumas cenas de medo intelectual, conhecidas imagens de milicos espancando estudantes e sons lancinantes de torturados. Há uma imagem de relance de agentes vestidos de civis "afogando" uma menina. O filme, porém, poupa as fardas e as estrelas. No máximo exibe alguns da ralé, soldados. Os chefes não são brindados na telona. São blindados. Os fardados são até simbolicamente poupados quando o único militar (fardado) exposto diz ser “contra isso que está acontecendo”, um tenente branco, ar sério e cabelo cortado baixinho, um fofo!
Fora isso, os representantes das forças de repressão são todos civis, pelo menos vestidos de civis. É ruim ver gente vestida de gente fazendo o papel sujo dos fardados, poupando a imagem da corporação. Ah, mas era assim que funcionava, ditadura civil militar com os infiltrados cabeludos, barbudos, disfarçados de universitários. Um grupo desses invadiu a casa dos Paiva sem qualquer cerimônia e “convidou” a vítima a prestar alguns esclarecimentos em lugar desconhecido. Rubens Paiva nunca voltou.
O sofrimento da família se mistura com as rotinas, o dinheiro escasso, a venda de parte do patrimônio, a mudança de casa, os anos que passam e Eunice Paiva se forma em Direito. Então entra de corpo e alma na defesa de territórios dos povos originários, uma légua de distância da ditadura. Um repórter reuniu a família e pediu que eles tirassem fotos tristes. Eunice não aceita e orienta para todos rirem. Rir do que?
O resultado chega nos 15 anos de esquecimento do Alzheimer. Considero a cena mais forte, aquela mulher idosa numa cadeira de rodas, alheia ao mundo, estática enquanto a vida fervilha do lado de fora, filhos e netos em festa. De repente, a cena na TV diante dela explode com sons e imagens da ditadura. Ela então deixa seu mutismo e levanta os olhos como se dissesse “isso não dá pra esquecer”. Nessa hora, eu quase choro.
Dizem que o filme na íntegra tem mais uma hora e assim, com três horas, será exibido pelo canal fechado Globoplay. Ah, as duas Fernandas e a presença de Selton Melo valem e muito o filme. Agora... levar o Oscar de melhor estrangeiro? Aoonde!!
Arthur
Pra mim, a cena final é a mais comovente, mesmo.