Vivemos tempos líquidos e gasosos, fumaça onde antes havia florestas, água onde antes havia terra. Estamos inundados e sem água pra beber.
Estamos no tempo dos excessos e das exceções, do imenso volume de palavras e da ausência de compreensão.
Vivemos tempos das conexões sem nexo e do nexo das desconexões. Deslavados, desterrados, desnudados, invadidos e envasados. Vivemos o início e o meio do fim dos tempos.
Nos abusam e nos abusamos. Acordamos sob o abuso dos despertadores que programamos pra nos abusar. Despertamos abusados do dia, da corrida pro ponto, do horário apertado, da rotina, do previsto e da cota de imprevistos.
E abusamos por vingança, odiamos o trânsito e a superlotação do metrô, empurramos para não ser empurrados, engolimos o café e adiamos defecar para quando chegar no serviço. Abusamos o corpo, abusamos do corpo.
Invertemos prioridades porque a prioridade é atropelar antes que nos atropelem. Chamamos isso de competência.
E vamos condenando os que julgamos culpados sem direito de defesa, nosso critério é o definitivo critério. E a execução precisa ser rápida antes que nos executem, corta-se a cabeça antes que nos degolem. Chamamos isso de eficiência.
O chefe abusador foi abusado pelo chefe anterior que foi abusado pelo anterior que foi abusado pelo pai. Todo abusado abusará, é da transferência de fluxos, assim são as correntezas. Nem percebemos que somos arrastados, que escolhemos o que nos orientam, isso ou aquilo, por aqui ou por lá, on ou off.
E nos orgulhamos pelas decisões ou nos deprimimos pelas indecisões. Acabamos no divã quando descobrimos que nossas vontades sempre foram as alheias ou na prisão quando descumprimos as leis, a ordenação das vontades. Chamamos isso de civilidade.
A expressão “estar no mato sem cachorro” é estar na vida sem muletas, sem bússolas, sem deuses. É uma expressão errada porque atribui-se ao cachorro a precisão de sentidos de orientação, mas saibam, cachorros também se perdem nos matos. Basta uma distração, um coelho e lá se foi a orientação. Ou seja, com ou sem cachorro, estamos no mato sem cachorro.
Houve um tempo em que confiávamos os caminhos às estrelas. Hoje confiamos nos satélites que não vemos, representados na mão por dispositivos eletronicos. Confiamos em dispositivos. Confiamos em imagens, em representações, em personagens, confiamos naquilo que nos mostram, porque infantis que somos não crescemos, inchamos, esticamos. Chamamos isso de maturidade. Que merda!
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