O Homo Erectus viveu sobre a Terra dois milhões de anos. Um tempo selvagem, rude, andando descalço, correndo nas pedras, coletando alimentos. Dois milhões de anos é tempo a perder de vista. Corta para o Homo Sapiens. Nossa espécie está no planeta há pouco mais de 195 mil anos - alguns pesquisadores falam em 200 mil. Mas o sapiens evoluido, o homem moderno, está há apenas 12 mil. Nesses míseros anos saiu da categoria integrada à natureza para assumir o protagonismo, o domínio e sua consequente destruição. Dificilmente o sapiens moderno chegará aos 13 mil anos, exatamente ao século 31.
Em 12 mil anos saimos rapidamente do desconforto saudável da natureza para o conforto doente das cidades. A revolução agrícola tirou os humanos das trilhas e das montanhas e os confinou nas vilas. Surgiram as primeiras propriedades e na sequência os ladrões de galinhas. Até então a cobiça era um sentimento desconhecido assim como os crimes por ciúmes ou por ouro. Logo uns tinham mais, outros menos e outros nada. Surgiram os invasores e os assassinos profissionais. Surgiram os religiosos, os nobres, os reis. Esses tinham a seu dispor os assassinos e invasores que quisessem. A história do Homo Sapiens é de conquistas e tragédias. Qual a chance disso durar?
A tecnologia avança e as doenças também - que por desgraça estão sempre à frente. Ao se desconectar da natureza, o sapiens passou a inventar uma pra chamar de sua e ingressou na era do troca-troca. A primeira troca foi o sol por lâmpadas, o dia prolongado por noites reduzidas. Trocou os pés por tênis, os olhos por lentes, as pernas por veículos e por fim, sentaram. O Homo Sentadus consegue passar oito, dez, doze horas preso a uma cadeira por dias, meses e anos, até se aposentar e finalmente descansar numa poltrona.
INCOMPATIBILIDADE EVOLUTIVA
Artigo do site Impulso, especializado em movimentos do corpo, traz o conceito da "Incompatibilidade Evolutiva". Em resumo: a vida moderna é incompatível com nosso corpo - seremos destruidos por tudo o que construimos para nos trazer conforto. Levamos milhões de anos no lento processo evolutivo para de repente mudar as regras do jogo. Alteramos a natureza para atender aos nossos caprichos. Para viver bem levantamos prédios de 100 andares, construimos cidades sobre aterros, drenamos rios, devastamos florestas e comemos fast foods.
A coisa começou a piorar no início do século XIX, por volta de 1830, com a invenção da sola de borracha. Para chegar ao perigoso tênis foram menos de dez anos. Em 1839, o químico Charles Goodyear misturou enxofre à borracha tornando-a flexível. A sola de borracha isolou o sapiens da terra. Daí em diante foi ladeira abaixo, o corpo que antes utilizava seus recursos naturais de esforço passou a amaciá-lo. Foi tão radical essa mudança que andar descalço numa rua, por exemplo, passou a ser visto como desequilíbrio mental, excentricidade ou sinônimo de mendicância. Sapatos, tênis, chinelos, botas viraram símbolos civilizatórios, conhece-se a pessoa pelos pés.
A bunda então passou a ser mais requisitada. Nos ônibus, trens e metrôs, gestantes, idosos e pessoas com alguma deficiência passaram a ter prioridade nos assentos. Deixar alguém assim em pé virou ilegalidade. As filas nos bancos e nas instituições ficaram proibidas. As leis obrigaram as empresas a destinar cadeiras para todos, porque estar em pé virou desumano. A evolução da espécie fez o humano sentar. Para isso, desenvolveram a ergonomia, o design das cadeiras para acomodar o corpo retirando qualquer chance de ofensa física.
Para quem busca movimento, inventaram as confortáveis academias com refrigeração, música alta e aparelhos ajustados às necessidades dos músculos. Para quem quer correr, os tênis tecnológicos com amortecedores inteligentes para não danificar os tendões e tornar o movimento mais natural possível, como se estivesse descalço. Mesmo com todos os cuidados, o índice de corredores com distenções musculares é cada vez maior. A civilização moderna do Homo Sentadus só se deteriora.
O retorno à natureza, no entanto, é um caminho para poucos. Trocar a vida urbana por zonas rurais é um movimento que exige coragem, desapego, resiliência. Conviver com sapos, aranhas, morcegos, onças e cobras não é pra qualquer pessoa. O processo de readaptação é lento e nem todos conseguem. Fato é que deixamos muito para trás a conexão com a natureza crua e ficou difícil retomá-la. O Homo Sentadus com seus tênis especiais não tem a menor chance de sobreviver em um ambiente desconfortável de brejos, igarapés e espinhos. A natureza é para os insanos. Mas só os loucos vivem nas cidades.
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